quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Linha Jardim Esperança


São 5:00 da manhã, Juversino acorda desesperado como sempre. Mais uma vez seu rádio relógio o tinha deixado na mão. Iniciava-se uma corrida contra o tempo. Seu ônibus sairia dali a uns poucos minutos, e ele haveria de percorrer três quarteirões. Correu na cozinha, difícil foi encontrar algo para comer. Mais difícil ainda, foi escolher uma entre as três peças de roupa. Lembrou-se ter esquecido de lavar suas camisas. E aí então, a escolha tornou-se mais fácil:
- Ah, vai essa mesmo!
Colocou o par de botas velho, escovou rapidamente o par de dentes, foi à cozinha, tomou uma xícara de café frio do dia anterior e partiu para o ponto de ônibus.
O ônibus pára no ponto. O rapaz entra e saca seu cartão de transporte, seu único amigo. Aliás, nem tão amigo... Sem créditos nele, vasculha, então, os bolsos da camisa, sem sucesso. Olha em um bolso e outro da calça e encontra algumas moedinhas que repassa ao cobrador. Procura lugar para se sentar, avista um mais ao fundo do ônibus. Nem bem se senta e é repreendido por olhares que sugerem que ele Ceda o lugar para a grávida de pé! Ele consentiu. Tudo bem, pensa. É mais um dia na vida deste trabalhador, que ainda haverá de tomar mais um ônibus após esse e quem sabe, ir em pé mais uma vez. Procura uma melhor posição, caminha um pouquinho a frente, onde havia um ‘pega mão’ mais compatível com a sua altura. Se acomoda. Confortavelmente!
Juversino, esperto que era, percebe que o ônibus havia tomado um trajeto novo naquele dia. Certamente, a prefeitura estava fazendo alguma operação tapa buracos na avenida principal. Neste caminho havia grandes irregularidades no asfalto, a velocidade foi reduzida quase a zero e mesmo assim, era difícil de se equilibrar em meio aos solavancos do ônibus.
Mas, Juversino, acostumado, parecia nem se importar. Nota que sentados no banco pouco a frente, estão dois senhores alinhados. Vestidos de terno e tudo mais. Estranha. Procura não olhar muito. Lembrava da pobre voz da senhora sua mãe lhe dizendo quando via esse tipo de gente: “para essa gente é melhor nem olhar!”
Mudou o foco do seu olhar, mas seu ouvido, permanecia ali. Ouviu um dos senhores dizer ao outro:
- Mario, como estava te dizendo, meu carro negou a pegar nesta manhã...
- Justo hoje, Ronaldo, que minha esposa precisou do meu...
- Ta maluco né? Que eu andaria naquela lata velha!
- Melhor do que coletivo.
- Ah, nisso você tem razão Mario, eu odeio isso aqui! Esse cheiro, esse povo com essas sacolas, esse cheiro de mofo... esses bancos duros, desconfortáveis. Deus me livre! Espero que nunca mais precise disso!
Mario apenas sorriu.
Juversino foi surpreendido com uma laranja rolando próxima ao seu pé. A que ele fez questão de recolher. Uma senhora se levanta e lhe diz:
- Obrigado, rapaz! É meu café da manhã!
Ele não diz nada. Parecia estar alheio a tudo e a todos. Próximo a essa senhora, duas moças conversavam em um tom alto:
Aline: - Vou prestar Enem, Camila.
Camila: - Mas você não está sabendo?
Aline: - hã...
Camila: - Vazou! Fiquei sabendo que estão vendendo essa prova! Pura ilusão isso aí...
Aline: - Sim, fiquei sabendo que vazou. Mas vai ser apurado para que os responsáveis sejam punidos!
Camila: - Punidos? Estamos no Brasil... Aqui, os responsáveis não são punidos. Só nós, pobres, somos punidos. Vai você fazer uma coisa errada para ver...
Aline ficou em silêncio por alguns instantes... Sabia que Camila tinha razão, mas sabia bem o que queria pra si e pouco depois insistiu:
Aline: - Mas a prova será em dezembro! E vou fazer, não importa, Deus vai me ajudar.
Camila: - Tenha muita fé, amiga!
Aline: - Eu tenho, vou fazer uma boa pontuação, e depois conseguir o PROUNI. E você deveria fazer o mesmo, não sabe que há cotas para negros, pode concorrer a uma vaga.
Camila: - Sabe que você tem razão, Aline! O Eltinho, amigo meu, está fazendo medicina. E tem bolsa PROUNI.
Aline: - É isso aí! Assim que se fala! Minha mãe já me dizia, antes de falecer: “a única maneira da gente se dar bem na vida é estudando”
Juversino, concordou. Também tinha sua mãe como uma referência. Neste instante se levanta um senhor, e ele se senta. Neste lugar, era possível mais uma vez, ouvir o papo de Mario e Ronaldo...
Ronaldo: - “Estou bem Marião?” Tenho que estar bem hoje para encontrar os outros empresários.
Mario: - Você está bem, Ronaldo! Parece que está indo para igreja se casar!
Ronaldo: - Não me fale em igreja. Sabe que não acredito nisso. Não acredito em Deus e em nenhuma dessas bobagens! Quando for me casar, será só no civil.
Mario: - Como preferir...
Ronaldo: - É que fico inseguro. Hoje acordei com o pé esquerdo, olhei mais de trinta ternos e nenhum combinava com a reunião que tenho esta manhã.
Mario: - ...
Ronaldo: - Para piorar, aquela incompetente da Romilda, não engomou direito a minha camisa. Não é possível, Mario! Eu já a expliquei centenas de milhares de vezes, mas a anta não entendeu ainda...
Mario: - Complicado...
Ronaldo: - Tive de vir com essa mesmo. Mas não pára por aí não amigão... no café da manhã, não sei o que a infeliz arrumou, que faltou, croiassan, brioche, geléia... Tudo errado! O leite frio... A disposição dos talheres toda invertida... Não dá! Depois reclamam de ter trabalho, não sabem trabalhar...
Mario: - é...
Ronaldo: - E ontem, ele veio com uma conversinha de registro em carteira...
Mario: - Ah, ela não é registrada ainda?
Ronaldo: - Claro que não! Com aquela carinha de coitadinha veio me dizer que é direito dela... direito... e pobre lá tem direito?
Mario: - Mas Ronaldo, Ronaldo, cuidado com isso amigo...Ela pode te levar na justiça do trabalho!
Ronaldo: - Pobre não tem vez, nem na justiça!
Mario: - Bom, faça como achar melhor. Agora que é de direito dela é! A Laudelina Campos de Melo que iniciou essa luta pelo direito dos empregados e deixou a Romilda hoje amparada... Inclusive agora tem um projeto chamado Educafro que...
Ronaldo: - Ah, e eu não sei? O filho da Romilda estuda lá...
Mario: - Ta vendo...
Ronaldo: - Ele disse que quer ser médico, a-há, há, há... médico! Imagina... um pé rapado daquele médico... Por isso que a saúde no Brasil ta assim...
O ônibus seguiu seu curso... Juversino, que havia sido bombardeado por idéias e ideais distintos e de todos os lados..., Permanecia pensativo... Lembrava da sua manhã, da sua cama com colchão duro, tentava imaginar como era a cama que Ronaldo dormia... Por um instante se imaginou em uma mesa enorme comendo brioche, que bobagem! Ele nem sabia o que era aquilo...
Verificou, disfarçadamente, seu cheiro. Sua aparência, pela primeira vez, o preocupou... Lembrou que quanto à roupa não tinha muita escolha...
Viu quando os senhores alinhados se levantaram e antes de descerem, abriram a janela e jogaram no meio da rua, o jornal. Descartado, que não teria mais utilidade. Desceram em um ponto próximo a grandes prédios do centro comercial da cidade... As moças desceram mais a frente, mais próximas a um novo ponto. Elas, certamente, iriam tomar outro ônibus, no difícil caminho que escolheram para si. O caminho dos espinhos, da luta... Onde cada obstáculo é vencido de uma vez. Mas o brilho no olhar de Camila e da amiga, parecia apontar um destino certo... Sabiam que não importa quantas conduções haveriam de pegar... Iriam chegar ao lugar que esperavam...
Juversino dá o sinal, antes de descer, ainda pega novamente a laranja da senhora e a devolve, era o café da manhã dela. Ele, certamente, não havia gostado de tudo que ali ouviu, mas daquele dia em diante, era uma pessoa renovada... ao menos se sentia assim! Sabia quais os caminhos eram possíveis, já pensava até em retomar seus estudos... “Às vezes é preciso que a vida nos dê o chocoalhão mesmo...” O próximo dia será determinante na vida dele! Que irá em busca dos seus sonhos, seu ideais, ou não...
O jovem desce afoito, passa na frente do ônibus ainda parado, fora da faixa tenta atravessar... foi uma pancada só... não há tempo para mais nada... A linha JD. Esperança havia chegado ao ponto final... (maestro, música fúnebre por favor! ok...)

(vide 'A hora da Estrela')

2 comentários:

  1. pois então caro amigo ... estes paradoxos da vida nos mostra que a riquesa do SER não está no TER ... claro q o TER ameniza muita coisa e, bom seria, se todos tivessem o mínimo q lhe é de direito ... mas enfim ... a esperança de um jardim na vida nos renova a cada dia e nos move na caminhada da vida ...

    boas férias queridão

    bjux

    ;-)

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  2. Fantastico post. Juvesino é a sintese do homem trabalhador de bem fudido que preciso subir na vida.

    Muito bom cara, eu gostei o modo como fez as conversas bombadearem o Juvesino. Me lembrou partes de livros que fazem essa estratégia aí.

    Abraços

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